A trajetória de Ariosvaldo Fernandes da Silva, o Parré, se filme fosse, seria um típico exemplo de jornada do herói. Aos 47 anos, depois de cinco participações em Jogos Paralímpicos, o atleta finalmente conquistou o único título que faltava: o de medalhista olímpico. Parré teve poliomielite aos 18 meses de idade e a doença deixou seus membros inferiores paralisados. Aos 17 anos, ele começou a jogar basquete em cadeira de rodas, esporte que abandonou em 2002 para abraçar o atletismo. A primeira academia do atleta foi nas dependências da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), onde funciona a Associação de Centro de Treinamento de Educação Física Especial (Cetefe).
A parceria entre Enap e Cetefe, união que já conta 34 anos, foi o mote do evento "Conexões Paralímpicas: Experiência dos Atletas e Inclusão", promovido nesta quarta-feira (25), na Biblioteca da Enap. Os relatos de superação e sucesso de quatro atletas paralímpicos que foram às Paralimpíadas de Paris 2024 deixaram vozes embargadas e olhos marejados entre os presentes. Em comum, todos relataram gratidão à parceria entre Cetefe e Enap, iniciativa que acolhe e promove ações na busca do aprimoramento e capacitação profissional da pessoa com deficiência.
“Muito antes de isso ser regimentado, de as pessoas falarem em inclusão, a Enap e a Cetefe já se preocupavam em promover a inclusão por meio do esporte, mas também para a promoção de uma cultura de produtividade, autoestima, capacidade, vivência e convivência social de pessoas com deficiência”, relatou Nathália de Araújo, gestora técnica e social da Cetefe. A parceria entre as instituições começou há 34 anos, em 1990, quando a Escola, que hoje tem 38 anos, contava apenas quatro anos de existência.
Apenas em 2015, por intermédio da Lei nº 13.146, foi instituído o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Entre os princípios da legislação, estão o respeito à dignidade inerente, independência e autonomia individual, a não discriminação e a participação e inclusão plena e efetiva das pessoas com deficiência na sociedade. Apesar de já ser regulamentada, os relatos dos atletas paralímpicos feitos na biblioteca da Enap nesta quarta-feira deixam claro que uma efetiva inclusão está longe de ser realidade. “Quem me vê aqui hoje não imagina o quanto foi fantástica essa experiência de participar de uma olimpíada depois de 12 anos de treinamento”, contou Danielle Torres Souza, primeira brasileira a representar o país como atleta de Parabadminton.
Além de Danielle e Parré, também participaram do evento outros dois atletas da Cetefe que foram a Paris e treinam no complexo esportivo da Enap, em Brasília: Ana Paula Marques, do halterofilismo, e Luciano Reinaldo Rezende, do tiro com arco. A iniciativa faz parte do projeto Biblioteca do Futuro (BdF), da Diretoria de Inovação (GNova) da Enap, que desde 2021 promove atividades culturais e pedagógicas com o objetivo de transformar a biblioteca em um espaço diversificado e inovador. Além dos atletas, a roda de conversa também trouxe três membros da comissão técnica que acompanhou a equipe brasileira nas Paralimpíadas 2024: Dênis Gigante, técnico de atletismo; Márcia Silveira da Costa Benetti, fisioterapeuta de tiro com arco; e Vinícius Luís Cyrillo, técnico de tênis em cadeira de rodas.
Sangue, Suor e Lágrimas
O relato mais esperado do evento foi o do medalhista olímpico Parré, que já participou de cinco Paralimpíadas e trouxe para o Brasil uma medalha de bronze nos 100 metros rasos em Paris 2024. “Na primeira corrida que fiz, de 5 km, eu era atleta de basquete em cadeira de rodas e não tinha cadeira de corrida. Achei que daria conta porque já tinha as mãos calejadas, mas terminei a prova com as mãos em carne viva”, relatou Parré.
Verdadeira lenda olímpica, o medalhista confecciona sua própria cadeira de corrida, em Goiânia, feita em fibra de carbono. Ainda assim, o equipamento pesa 9 quilos, 5 a mais que o que o dos atletas paralímpicos de outros países. “Não há nenhum atleta da época em que começamos”, contou o treinador, Dênis Gigante, que acompanha e orienta os treinos diários do atleta. “Todos os dias, de 7h da manhã ao meio-dia e no período da tarde fazemos uma hora e meia de academia, mais ou menos”, contou.
De acordo com a diretora de Projetos Paradesportivos de Educação, Lazer e Inclusão Social do Ministério do Esporte, Nayara Falcão, as dificuldades encontradas por Parré estão longe de ser exceção. “Falamos em inclusão porque temos pessoas sendo excluídas e invisibilizadas. Enfrentamos cotidianamente um capacitismo profundo e estrutural que nos nega possibilidades simples como, por exemplo, a de comprar um pedaço de bolo numa padaria. Eventos como este trazem para nós, pessoas com deficiência, um resgate. Somos humanos, estamos aqui”, afirmou a diretora.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): Pessoas com Deficiência 2022, divulgada em julho de 2023, a população com deficiência no Brasil foi estimada em 18,6 milhões de pessoas de 2 anos ou mais, o que corresponde a 8,9% da população. “Estamos falando de pessoas que muitas vezes não têm sequer o direito de ir e vir, já que falta acessibilidade à muitas cidades brasileiras. Somos pessoas, homens e mulheres que têm tantas características que não só a deficiência”, explicou Nayara Falcão.
Campus
O diretor de Gestão Coorporativa da Enap, Lincoln Moreira, reforçou a importância de garantir uma gestão que contribua com a diversidade e inclusão. “Hoje celebramos a conquista desses atletas de alto rendimento que treinam no Complexo Esportivo da Enap, em parceria com a Cetefe. Esse evento foi uma forma de homenagear não apenas as vitórias, mas também a dedicação desses atletas, que servem como motivação para todos. Isso reforça o nosso compromisso com a inclusão e o esporte no Brasil”, comemorou.
Em 2023, a Enap reinaugurou seu Complexo Esportivo, local utilizado para o treinamento dos atletas paralímpicos de alto nível. A revitalização do complexo trouxe três quadras profissionais de tênis, duas quadras de areia para beach tennis, futevôlei, vôlei e um campo de futebol society. Além disso, o complexo oferece academia de musculação (com mais de 40 equipamentos) e os professores da Cetefe são responsáveis pela elaboração e supervisão dos treinos. O campus também conta com uma piscina semi-olímpica.