A Fundação Apolitical, que concedeu a honraria, foi criada como braço sem fins lucrativos do Grupo Apolitical. A organização busca fomentar soluções para o setor governamental e estimular uma administração pública qualificada. “A inovação é fundamental e não uma palavra bonita para vender uma ideia abstrata. É palpável, muda para melhor a vida das pessoas”, afirma Natália ao comentar o projeto de criação da EV.G. Falando sobre a mais recente premiação, ela aborda diferentes aspectos que permearam a construção do projeto e que servem de alicerce para atividades profissionais e pessoais que vão muito além do que ela e os profissionais que estiveram ao seu lado realizaram. Esta é mais uma entrevista da série especial Enap Líderes que Refletem, uma série de conversas com as lideranças da maior escola de governo do país, que são alicerces e promotores da transformação.
A Enap é um ambiente que agrega servidores de muitas áreas e órgãos diferentes, mas você é da carreira técnica administrativa da Escola. Como isso impactou sua trajetória até se tornar uma gestora?
Natália Teles da Mota: Quando entrei na Enap, 14 anos atrás, era impensável a perspectiva de ocupar um cargo de coordenação-geral, de diretoria e até de presidenta, ainda que na condição de substituta. Sou da carreira de técnico em assuntos educacionais. As oportunidades de ocupar cargos de liderança são recentes para nossa carreira. É uma coisa circunstancial, mesmo. Por isso, acho importante falar a respeito. O fato de eu ser de uma carreira técnica administrativa da Escola e ter alcançado a posição de gestora é uma forma de incentivo, abre caminhos. Tanto para as posições de liderança, como para as posições de agentes promotores de inovação que gera impacto e valor para o serviço público.
Você acha que a marca da inovação passa pelo dia a dia dos servidores muito mais do que quem está do lado de fora percebe?
Natália Teles da Mota: Esse é um outro aspecto que dialoga diretamente com a minha trajetória e que faço questão de falar. Servidores técnicos e aqueles que lidam com os desafios do cotidiano, muitas vezes em carreiras essenciais, mas menos prestigiadas, promovem inovações significativas. Existe um movimento de inovação acontecendo todos os dias na ponta. A inovação não é um lugar glamoroso dos laboratórios, do ócio criativo. A inovação está muito conectada com a resolução de problemas no dia a dia. O fato de eu ter permanecido da escola, atuando por anos com o mesmo processo de trabalho, seja como técnica, seja como gestora, ao lado de uma equipe que lidava com os mesmos problemas, permite ver e viver isso. A inovação surge de um olhar de quem realiza uma tarefa corriqueira. Houve nessas ocasiões um espaço de muito trabalho associado a liberdade, a autonomia e ao olhar crítico. Muito importante também: havia uma enorme tolerância ao erro. Como gestora hoje, tenho essa característica e acho que isso favorece a inovação, que é o fato de haver espaço para o fracasso. É claro que nosso objetivo está na excelência, mas chegar lá é um processo árduo. Passa pelo erro e creio que não existe inovação sem risco.
Como nasceu o projeto da Escola Virtual.Gov?
Natália Teles da Mota: Em 2016 havia pouca compreensão sobre essa iniciativa. A gente tinha clareza, mas era difícil vender essa ideia. Ela era disruptiva e caminhava em direção a lugares que hoje são comuns, mas que então não faziam sentido ou eram até mal vistos em termos de ensino. Naquele ano, iniciamos a concepção teórica da coisa. O desenvolvimento da plataforma aconteceu em 2017. Em 2018, lançamos o primeiro curso.
Qual foi o impacto disso?
Natália Teles da Mota: Saímos de um lugar de 30 mil para 1 milhão de capacitações por ano. Isso já no ano seguinte. Foi revolucionário. Uma inovação que nasceu dentro da área de negócio, com baixa institucionalidade inicialmente. Fizemos tudo dentro da coordenação. O patrocínio a essa iniciativa foi chegando depois dos primeiros passos internos. Então, muito daquilo que foi essencial, foi fruto de um trabalho inovador, mas, antes de mais nada, do ímpeto que a equipe teve de criar algo capaz de transformar a vida das pessoas para melhor e a coragem de realizar. Hoje, é natural e até intuitivo pensar em ferramentas assim. Porém, àquela altura, era ousado, arriscado, mas com grande potencial. Nos concentramos muito nesse potencial, gerenciamos o risco e decidimos ousar.
Qual era o risco de desenvolver a Escola Virtual.Gov naquela época?
Natália Teles da Mota: A educação online era muito questionada, não tinha o valor e a presença que tem hoje na vida das pessoas. Carregava consigo uma visão muito negativa. Mas o principal desafio eram os arranjos institucionais para sustentar uma iniciativa compartilhada por diversas instituições. Havia, por exemplo, obstáculos relacionados à tecnologia. Muitas ferramentas fundamentais para o EAD que temos hoje não existiam. Os arranjos jurídicos e políticos também exigiam um olhar criativo e inovador. Foi nesse ambiente permeado de dúvidas questionamentos que trabalhamos. Ele foi nosso fardo, mas também a matéria-prima para a transformação porque nos mostrava o tempo todo aquilo que queríamos melhorar.
Passados quase 10 anos, como você avalia essa criação?
Natália Teles da Mota: Hoje conseguimos chegar em qualquer município do país. Nossa escola de governo brasileira está presente em 70% dos países do planeta. Isso é sensacional. Temos parceiros internacionais, institucionais e empresas de grande porte, além de outras que nos procuram querendo fazer parte. Tem muita inovação nesse processo e ela não para. Em termos de arranjo, de mercado, de metodologia e de pensar novas formas de fazer educação. Agora temos a onda da IA nos provocando em direção a novos horizontes.
Qual foi o papel de Escola Virtual.Gov quando a pandemia começou?
Natália Teles da Mota: Lançamos esse projeto em 2018 e em 2019 me afastei dele em razão de outros compromissos profissionais que resolvi buscar quando senti segurança de que aquilo que havíamos criado podia caminhar com certa autonomia numa direção que contemplasse crescimento, desenvolvimento e inclusão. Em 2020 veio a pandemia e a EV.G salvou boa parte daquilo que é um dos pilares da Enap, que é o acesso ao conhecimento. Ao mesmo tempo, foi uma resposta imediata da Escola para uma crise sem precedentes que vitimou milhares de pessoas e paralisou incontáveis setores, inclusive o educacional. Então aquilo que em 2016 era ousado e arriscado foi a semente do que depois seria um instrumento de estabilidade e segurança para a Enap e milhares de estudantes que por aqui passaram naquele momento de pura incerteza e medo. Enquanto muitos tiveram de agir às pressas, havíamos construído uma trajetória que nos permitiu ter o equilíbrio necessário para lidar com a grave crise sanitária que estava diante do mundo. Coisas assim mostram como a inovação é fundamental e não uma palavra bonita para vender uma ideia abstrata. É palpável, muda para melhor a vida das pessoas.
A Apolitical aponta você por seu papel na construção dessa plataforma e na maneira como isso contribuiu para solidificar o ensino a distância no setor público. Houve outros prêmios. Como isso impacta seu trabalho?
Natália Teles da Mota: Todas essas premiações e reconhecimentos dialogam não só com a minha atuação individual, mas com a atuação institucional, com toda a repercussão positiva que isso teve nas equipes. São equipes que cresceram muito e cujos integrantes hoje ocupam cargos importantes. Saíram dessa experiência com um senso de espírito público e compromisso muito apurado. Foram equipes em que conseguimos trazer muita diversidade. Havia essa preocupação. Trouxemos profissionais cegos, profissionais surdos, profissionais indígenas, profissionais transsexuais, profissionais negros. Isso foi parte do nosso cotidiano e creio que foi um elemento muito importante para o tipo de transformação que queríamos promover. Fomos capazes de agregar diferentes olhares e referenciais. A diversidade nos fez mais criativos, mais resilientes e mais capazes. Deu estofo àquilo que produzimos. Receber os primeiros prêmios foi algo desconfortável, até difícil mesmo. Eu entendia que estava usurpando o mérito de um coletivo. Receber um reconhecimento individual por algo que foi coletivo é difícil para um servidor público. Não somos dessa cultura da valorização individual. Fui construindo uma narrativa interna para entender esse lugar e para entender que ali eu representava outros servidores e que eles se sentiam reconhecidos por meio do meu reconhecimento.
Quais os legados desse trabalho?
Natália Teles da Mota: A forma como essa equipe se relacionou, inclusive dentro de condições que parecem intransponíveis à primeira vista, foi vital. Notar como a comunicação entre uma pessoa surda e uma pessoa cega se tornou não somente viável, mas fluente, nos ensina muito. Apesar de isso não ter um resultado em termos de projeto em sentido mais estrito, foi muito transformador em termos de cultura e de ensinamento sobre a vida. Tudo isso fez parte do olhar sensível que tínhamos para esse projeto. Envolvemos estudantes universitários, muitos voluntários, numa sistemática muito nova para o serviço público. Atuamos pelo fortalecimento da democracia. Queremos levar conhecimento e aprimoramento ao serviço público de todos governos em termos de processos, projetos e liderança. Isso fortalece a democracia. Foi um projeto que deu muito certo e que precisa ser revisto e transformado. Como qualquer projeto, a evolução é parte da sobrevivência. Estamos em outro momento. Porém, independente de como ele deu certo e funcionou, o legado que permaneceu nas pessoas, os talentos que ali foram desenvolvidos ou aprimorados, já fez dessa uma trajetória muito bem-sucedida e uma referência que guardamos para aquilo que criaremos a partir daqui. Liderança, gestão e propósito.