Como a formação de quadros da administração pública pode de fato refletir em ganhos para a população?
Alexandre Gomide: A forma de você treinar e capacitar as pessoas, e no caso os servidores públicos, é uma maneira poderosa de você transformar as coisas. Acho que o serviço público brasileiro precisa de transformações para enfrentar os desafios sociais. Hoje, temos desafios no mundo e no Brasil que demandam a atuação do serviço público e do Estado. Não são problemas que se resolverão pelas forças do mercado. Nesses casos, é preciso um ator que organize a ação coletiva e esse ator, por excelência, é o Estado. Por exemplo, as mudanças climáticas. Trata-se de um problema que, se não houver uma atuação coletiva que envolva o governo, o mercado e a sociedade como um todo, não conseguiremos resolver. Outro grande desafio é a questão das desigualdades e isso envolve as dimensões social, racial e de gênero. Abrange ainda outras questões, como a desindustrialização da economia brasileira e nossa incapacidade em gerar bons empregos para as pessoas. Precisamos de grandes mudanças e o Estado tem um papel. Nesse sentido, a capacitação e a formação de servidores que compreendem esses problemas, possuem as habilidades e competências para lidar com eles e inovar em soluções que elaborem e implementem políticas públicas eficazes é vital.
Mas as pessoas em geral parecem não enxergar esse papel do servidor público nessas questões, não?
Alexandre Gomide: Recentemente sofremos um grande ataque contra a nossa democracia e contra o serviço público. Porém, nesse cenário, em muitos casos, foram os agentes públicos que garantiram a resiliência de várias políticas e programas. Há mesmo um olhar desconfiado e estereotipado sobre o papel dos servidores. Por isso, creio que precisamos de novos paradigmas para pensarmos o que seria esse Estado que deve ser ágil para entregar os bens e serviços para a população e, ao mesmo tempo, resiliente para garantir a continuidade das políticas e serviços essenciais.
Como a DAE tem trabalhado para contribuir nessa construção?
Alexandre Gomide: A DAE tem trabalhado para contribuir na construção do conhecimento e novos paradigmas de gestão pública por meio de diversas estratégias. Primeiramente, ela utiliza sua capacidade de fomentar e pautar pesquisas aplicadas, bem como suas publicações, para disseminar esse conhecimento no Brasil, adaptando-o ao contexto local, um processo que pode ser chamado de ‘tropicalização’. Exemplo disso é a parceria que temos com o IIPP da UCL. Além disso, a DAE promove debates através de eventos e pretendemos usar todas as ferramentas de comunicação disponíveis, buscando ampliar o diálogo e fomentar massa crítica. A disseminação de conhecimento aplicado é um objetivo central da Enap, com a DAE atuando como uma fonte de prospecção e adaptação de conteúdos que são integrados à formação e capacitação dos servidores públicos. Isso inclui a incorporação em nossos cursos de pós-graduação stricto sensu, especificamente os programas de mestrado e o doutorado.
Qual o papel dos programas de mestrado e doutorado?
Alexandre Gomide: Os programas de mestrado e o doutorado profissional, e também os cursos de extensão da pós-graduação, desempenham um papel crucial ao colocar em pauta esses temas avançados, permitindo que o conhecimento gerado e disseminado pela DAE se traduza em uma formação acadêmica robusta. Os programas stricto sensu também produzem conhecimento, por meio das pesquisas desenvolvidas nas dissertações e teses. Assim, a DAE tem o papel de intermediar o conhecimento existente na universidade e na administração pública, contribuindo significativamente para o aprimoramento da gestão pública por meio da formação dos servidores e na aplicação do conhecimento.
Quais são os principais serviços oferecidos pela Enap para a avaliação de políticas públicas e como eles têm ajudado as organizações públicas?
Alexandre Gomide: Temos duas principais frentes de trabalho: a Assessoria para Avaliação e o Evidência Express (EvEx). A Assessoria para Avaliação oferece apoio técnico e metodológico para avaliar políticas públicas, envolvendo gestores no processo para que aprendam fazendo. Já o EvEx é um serviço rápido que reúne e dissemina evidências para ajudar no desenho, monitoramento e avaliação de políticas. Recentemente, fizemos um seminário com o Ministério da Igualdade Racial (MIR) para ajudá-los a criar um protocolo de igualdade racial no setor público. Publicamos uma pesquisa sobre as melhores práticas para dar ao ministério uma boa base de informações. Já fizemos parcerias com mais de 20 órgãos e entidades, incluindo o governo federal e governos locais.
Quais outras parcerias vocês realizaram e como as pesquisas têm ajudado a administração pública?
Alexandre Gomide: Vou dar dois exemplos. Primeiro, uma parceria que fizemos com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) envolvendo pesquisas, análise de dados e organização de evidências. Isso vai subsidiar o ministério a desenvolver políticas de fortalecimento institucional para a implementação de ações na área dos direitos humanos e cidadania. Outro exemplo é a pesquisa sobre organizações públicas que vai subsidiar a Comissão de Especialistas criadas pela Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) a revisar o Decreto-Lei 200, no sentido de instituir uma transformação na estruturação e o funcionamento do governo federal.
Que tipos de ferramentas a DAE planeja usando toda essa dinâmica de ciência de dados?
Alexandre Gomide: A DAE desenvolveu recentemente o InfoChat, que é uma aplicação do ChatGPT voltado a transparência e a consulta de dados. O InfoChat já foi testado com os dados do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (SIAPE), do Censo 2022, e, mais recentemente, de dados de Notas Fiscais da Controladoria-Geral da União (CGU). A ideia é que o InfoChat seja um novo instrumento de transparência e controle social que será tocado pela CGU. O InfoChat visa facilitar a vida do cidadão que, ao invés de acessar diversas bases de dados para responder uma perguntar, poderá simplesmente perguntar diretamente ao InfoChat.
A DAE pretende estender essa tecnologia para outros órgãos?
Alexandre Gomide: As aplicações de inteligência artificial precisam ser experimentadas. A DAE pode contribuir com a resolução de problemas públicos utilizando essa tecnologia. Contudo, a Enap não é uma organização que será responsável por sustentar essas soluções e fazer sua manutenção. Enxergamos nossa atuação como uma forma de tracionar algumas iniciativas intensivas em tecnologia, que depois precisam ser transferidas aos órgãos finalísticos para que eles a ofertem diretamente ao seu público alvo.
Como esse projeto se relaciona com outras iniciativas da DAE?
Alexandre Gomide: Na DAE temos a ideia de retirar barreiras para a realização de estudos e pesquisas. Quando obtivermos acesso aos dados dos órgãos parceiros, vamos prepará-los para que possam ser usados em análises que atendam outras demandas. Estamos construindo uma grande capacidade de análise de dados no âmbito da diretoria, que é traduzido na iniciativa Cooperação em Dados e Análise (CODA). Sabemos que trabalhar com dados públicos envolve um gasto de tempo muito grande na preparação e limpeza dos dados. Então, o CODA vem como estratégia de aproveitarmos o tratamento usado para uma pesquisa, também seja usado em outra.
Há proposta de usar algum tipo de levantamento que tenha como base a opinião dos próprios servidores?
Alexandre Gomide: Estamos preparando é um grande survey que envolverá o serviço público inteiro, que se chama Vozes do serviço público. Nos dará informações, com base na percepção dos servidores, sobre como cada órgão tem se saído em termos de clima organizacional, satisfação no trabalho, liderança e engajamento, entre outras coisas. Ou seja, o que acontece dentro dos órgãos, seus processos e rotinas. É um elemento importante para melhorar o desempenho das organizações públicas e as entregas para a sociedade. Os resultados da pesquisa serão utilizados pela SGP do MGI para promover a transparência e como subsidio para os gestores dos órgãos pesquisados para melhorar as condições de trabalho, o ambiente organizacional e o planejamento estratégico.
A questão da ideologia no serviço público é um problema que interfere no clima organizacional e nas entregas?
Alexandre Gomide: Isso é uma coisa que vamos investigar. Todos temos ideologias. A questão é que o serviço público envolve uma ética. Temos de preservar essa ética. Valores pessoais de quaisquer naturezas não podem sobrepujar essa ética do serviço público, que é garantir a laicidade, a impessoalidade e a isonomia. Garantir a legalidade, a transparência e atender o que diz a Constituição. Esse é o dever do servidor público. Esses princípios são fundamentais para manter a confiança da sociedade no Estado. A questão dos valores democráticos e republicanos no serviço público federal é um tema de nossas pesquisas.
Qual o papel do servidor na defesa da democracia?
Alexandre Gomide: O servidor, ciente das suas obrigações e deveres, protege o Estado democrático de direito e os direitos sociais. O servidor deve ser leal à Constituição. É o princípio da legalidade. Por isso, o serviço público é um dos pilares da democracia.