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“Para transformar o serviço público, servidores precisam enfrentar as desigualdades de gênero e raça para não deixar ninguém de fora do projeto de desenvolvimento do país”, afirma diretora de educação executiva
Iara Alves fala sobre os desafios de oferecer formações e capacitações para carreiras estratégicas e transversais e para altas lideranças da administração pública e defende o desenvolvimento de competências de análise crítica das diversidades populacional e territorial na estratégia de atuação da Enap

Iara Alves está em sua terceira passagem pela Enap. No início de 2023, assumiu o cargo de diretora de educação executiva, o mesmo cargo que ocupou entre 2017 e 2018, sendo responsável pelos programas: formação inicial de carreiras, aperfeiçoamento de carreiras, capacitação de altas lideranças e pós-graduação lato sensu. Porém, sua primeira passagem pela escola foi como aluna na formação inicial de carreiras da Enap, quando foi aprovada no concurso de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG). As memórias e aprendizados da formação permanecem vivas. “Tenho muito carinho pela Enap. Estar aqui me traz recordações do momento que me tornei servidora, do sentimento de esperança de provocar mudanças estruturais e das redes que formei aqui ao longo dos anos, não só na formação como no aperfeiçoamento.

A formação na Enap foi fundamental para a construção do ethos de servidora que tenho orgulho hoje”, diz ela. A diretora de educação executiva fala sobre o trabalho que ela e sua equipe realizam com o objetivo de formar e qualificar servidores públicos que atuam proativamente na defesa dos princípios e direitos constitucionais na sua atuação na formulação de políticas públicas e na tomada de decisão. “Temos consciência da nossa responsabilidade ao formar e capacitar muitas das carreiras melhor remuneradas do funcionalismo público federal”, explica. Ela destaca ainda que os valores relacionados a direitos humanos orientam o seu trabalho. “As diversidades da população brasileira e do território nacional são trabalhadas de forma transversal em nossos programas, sendo pensadas desde o planejamento até a implementação e avaliação dos cursos e eventos da Enap”, afirma. Iara é mais uma entrevistada da série especial Enap Líderes que Refletem, uma coletânea de conversas com as lideranças da maior escola de governo do país, que são alicerces e promotores da transformação.

Você tem uma ligação e uma experiência pessoal com aquilo que a Enap oferece. Como foi isso?
Iara Alves: Sou uma servidora pública que é produto da Enap. Sou especialista em políticas públicas e gestão governamental. Quando passei no concurso, fiz minha formação na escola. A segunda etapa do concurso para Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) é a formação intensiva de quase 600h na Enap. Além disso, após a posse, temos de fazer cursos do programa de aperfeiçoamento para promoção na carreira. Tenho certeza que me transformei muito após a formação e continuo me transformando a cada curso, pois nunca paro de estudar. A formação inicial foi marcante em termos de construção do meu ethos público, de uma mentalidade voltada para o servir ao público. Tenho muito carinho também pelas recordações com todos as colegas. As redes que formamos aqui na formação ficam para o resto da vida. Sei bem como tudo isso é parte fundante da pessoa e da servidora que sou hoje. Quando terminei o curso da formação na Enap, já era outra pessoa. O programa foi um ponto de partida para uma série de habilidades que não estavam no meu radar até então, em função da minha carreira até aquele momento não ter um direcionamento para a esfera pública. Além disso, foi também um indutor para um processo de maturidade em habilidades importantes para tudo que preciso fazer como especialista em políticas públicas e gestão governamental.

O que foi mais importante nessa experiência como aluna da Enap?
Iara Alves: Tem uma frase famosa de Simone de Beauvoir que fala que a gente não nasce mulher, nos tornamos mulher. Creio que no serviço público é algo parecido. A gente não se torna servidor público de imediato ao passar no concurso e tomar posse. Por isso, sempre enxerguei a importância desse processo de formação profissional rumo à transformação pessoal em que você se torna um servidor e passa a perceber de maneira bastante clara essa preocupação em servir ao público, fortalecer o Estado e a democracia. As redes que formamos também na Enap e com egressos da escola fazem diferença. Tive a sorte de começar minha carreira lotada no Ministério do Desenvolvimento Social. Lá, trabalhei com um grupo muito grande de especialistas em políticas públicas e gestão governamental, gestoras que me inspiram, por terem uma preocupação forte com o impacto das políticas públicas nos diversos grupos populacionais que formam nosso país, além de um cuidado especial com a gestão. Acima de tudo, os programas da Enap desenvolvem valores democráticos, enraizados em nossa forma de pensar o exercício de nossa atividade pública.

Como essa vivência na Enap, num momento tão importante na sua formação como servidora, impacta seu trabalho hoje, como diretora de educação executiva?
Iara Alves: Uma preocupação muito forte da atual gestão da Enap é construir um ethos democrático e inclusivo no setor público. Nós da diretoria de educação executiva temos a responsabilidade de construir um programa de formação – por meio da formação inicial, MBAs, aperfeiçoamento e capacitação de altas lideranças - que estimule o engajamento de servidores para fortalecer o Estado por meio de políticas com senso de promoção da justiça social, do desenvolvimento inclusivo e sustentável e defesa de direitos humanos e do meio ambiente. Como o Concurso Público Nacional Unificado (CNU) é uma grande oportunidade para tornar o serviço público mais diverso com a perspectiva de maior entrada de pessoas de todas as regiões do país, a Enap tem a grande responsabilidade de formar um novo corpo burocrático federal ciente de seu papel de servir aos interesses públicos e defender o Estado brasileiro. Tendo em vista o impacto que a formação inicial tem na trajetória do servidor, uma das decisões que considero mais importante na minha gestão na DEX foi ampliar o escopo da formação inicial, anteriormente oferecida para somente duas carreiras, para mais quatro carreiras na modalidade presencial, com carga horária mínima de 380 horas, além de criar uma formação básica EAD para todos servidores federais distribuídos em todo o país. Os programas estão sendo trabalhados de forma participativa e com apoio de expertos acadêmicos de diversas áreas. Esperamos que os novos servidores tenham conhecimentos intersetoriais para construir políticas sólidas, fortalecer as instituições e a democracia para garantir direitos. A transversalidade de gênero e raça é um dos pilares do programa, porque sabemos que em momentos de crises econômica e social as pessoas negras e as mulheres são as mais prejudicadas. Desde que cheguei na Enap, após finalizar o doutorado em estudos gênero na UFBA, tenho trabalhado intensivamente pelo fortalecimento da agenda de igualdade racial e de gênero no governo federal, coordenando na Enap, a Formação e Iniciativas Antirracistas (FIAR) e a Formação e Iniciativas Feministas (FIF) e, em breve, a Formação e Iniciativa para Cuidados.

Falando em uma perspectiva mais atual, como essa formação que a Enap oferece busca impactar aqueles que passam pela escola hoje?
Iara Alves: Normalmente, quem entra no serviço público vem do setor privado. Há também aquelas pessoas que nunca trabalharam, chegam direto da faculdade. Evidentemente, há servidores que passam em concursos para cargos melhores, mas são pessoas que chegam com outra mentalidade. Por isso, precisamos formar as pessoas para que elas possam ser servidoras públicas, não é só treinamento. Não estou falando de treinar pessoas, falo de formar. Por isso, estamos preparando uma formação que traz discussões importantes a respeito da construção do nosso país e envolve aspectos de burocracia representativa, democracia, desigualdades, economia, sustentabilidade, meio-ambiente, e um amplo entendimento sobre o funcionamento e as relações entre os entes federados e entre os poderes. Sobretudo hoje, num ambiente de tanta desinformação, ter conhecimento formal intersetorial se torna mais importante ainda. Formar servidores mais profissionais, mais conscientes das suas responsabilidades ao produzir políticas públicas é o papel da escola para colaborar para que o Brasil se aproxime cada vez mais do modelo de Estado de bem-estar social, como previsto em nossa Constituição.

Existe uma vocação para o serviço público ou qualquer pessoa pode atuar?
Iara Alves: A Enap tem trazido a discussão sobre a vocação para o serviço público. É um diálogo interessante. Penso que a vocação não é somente uma característica com a qual a pessoa nasce. É algo que pode ser aprendido e desenvolvido na medida que o seu grau de consciência sobre o valor do trabalho público aumenta. Existe uma construção social em nosso país no sentido de que as pessoas têm de se formar para ganhar dinheiro e serem bem sucedidos. Porém, essa ideia traz consigo uma métrica de sucesso individualista. Quando você entra no serviço público, há muitas responsabilidades envolvidas que vão além de metas individuais e de valores ligados à promoção na carreira. São importantes, mas servidores públicos vocacionados trabalham com propósito, se dedicam a transformar a realidade e aprimorar a gestão pública. Para isso, precisam ter competências diversas para lidar com as complexidades envolvidas em tomar decisões, grandes ou pequenas, que têm potencial para impactar a vida de muitas pessoas.

De que forma a diversidade é uma prática real na Enap para além dos discursos?
Iara Alves: A diversidade está transversalizada nos conteúdos dos cursos e eventos que criamos e planejamos. Além disso, trabalhamos com a importância de termos uma presença diversa de professores e alunos nas formações e capacitações. Por exemplo, estabelecemos como critério nos cursos da Educação Executiva – aperfeiçoamento, altas lideranças e MBAs - a paridade de gênero, cotas raciais e para pessoas com deficiência. Para nós, a equidade é inegociável. Nos cursos de altas lideranças, por exemplo, sabemos que pessoas negras ainda não estão ocupando cargos de nível 4 acima na mesma proporção que pessoas brancas. Então, para incluirmos pessoas negras, decidimos aceitar pedidos de inscrição daqueles que estão no nível 3, justamente para poder estimular a presença de mais pessoas negras nos cargos de tomada de decisão. Além disso, fazemos alguns programas exclusivos para mulheres, como liderança, programação e análise de dados, justamente para ampliar a presença delas em áreas ainda dominadas por homens.

Como enfrentar o estigma de ineficiência muitas vezes atribuído ao serviço público e ao servidor?
Iara Alves: Eu ouvi muito isso antes de entrar no serviço público. É muito difícil uma pessoa jovem querer ingressar no setor público porque a ideia que se vende a respeito do servidor é essa. Temos de entender que há uma construção por trás disso em defesa do Estado mínimo. Para construir a ideia de que o mercado é quem deve resolver os problemas do país e não o Estado, é preciso atacar os servidores. A campanha de desvalorização dos salários do serviço público, o desmantelamento das políticas públicas e a construção de uma imagem de ineficiência do servidor, são partes de uma narrativa no sentido de promover o mercado como grande balizador social. Porém, em experiências recentes de crises sanitárias e sociais, vimos que são os sistemas públicos de políticas, como o SUS e o SUAS, que evitam grandes tragédias e misérias. A burocracia do Estado atua pela resistência ao desmantelamento de políticas essenciais à nossa população mesmo em momentos de desvalorização e pouco financiamento. Precisamos dar visibilidade ao que o Estado oferece, à importância de termos políticas estáveis e financiamento contínuo de serviços essenciais para nossa população e para a preservação do meio-ambiente e de nossos recursos naturais. O mercado não trabalha com objetivos de longo prazo, e nem com o que não traz retorno financeiro. É o Estado, fortalecido por servidores públicos engajados e vocacionados, que garante direitos fundamentais e o bem estar das pessoas.

O que a Educação Executiva oferece para os servidores?
Iara Alves: A DEX tem o papel de formar servidores públicos. Então, a gente forma servidores públicos federais, principalmente das carreiras mais estratégicas, que são aquelas que estão envolvidas na formulação e na tomada de decisão. Temos uma responsabilidade grande de formar servidores de carreiras engajados e comprometidos com o interesse público. Oferecemos também formação de lideranças, que é voltada para pessoas que chegam e ocupam cargos comissionados. Tanto líderes comissionados sem vínculo com o serviço público, quanto comissionados com vínculo efetivo, ou seja concursados. Recentemente, assumimos a responsabilidade de formular um curso para formação de lideranças estaduais e municipais. Para todos esses públicos, oferecemos cursos de curta, média e longa duração, como cursos de 20h a 40h, programas de licença capacitação, bootcamps, formação inicial presencial com no mínimo 380h, com direito a título de pós-graduação latu sensu, formação inicial EAD, programas de MBA, assessorias, seminários e palestras com temas de fronteiras, mentorias e cursos fora do Brasil com instituições renomadas parceiras da Enap. Como servidores públicos, a nossa responsabilidade é a construção de um perfil com competências de gestão, de liderança, conhecimento técnico e com comportamento de defesa do território e da soberania nacional, dos interesses diversos dos grupos populacionais brasileiros, de preservação do meio ambiente, de garantia de direitos humanos e de fortalecimento da democracia.

Qual a diferença da formação de lideranças públicas e capacitação de profissionais para o mercado?
Iara Alves: Quando se fala em desenvolvimento profissional no mercado privado, geralmente o que está em vista é uma ascensão na carreira, uma coisa mais individualista. Por outro lado, quando falamos sobre desenvolvimento profissional no contexto da Enap e do serviço público, a ideia é trazer profissionalismo para o serviço público para torná-lo mais eficiente e justo na entrega para a sociedade. Então, é um cenário que leva em consideração, por exemplo, que partes significativas da população não têm acesso aos serviços oferecidos pelo Estado. Nesse sentido, o líder público precisa ter conhecimentos intersetoriais e capacidade de análise crítica para ativar sua consciência, responsabilidade e compromisso de, tomar decisões de alocação de recursos de forma a incluir grupos populacionais e regiões do país historicamente deixados de fora do projeto de desenvolvimento. A formação de um líder público deve oferecer conhecimentos dos campos de gestão e administração pública, economia, desenvolvimento sustentável, estudos de gênero e raciais, ciência política, entre outros, além de desenvolver competências de escuta, de negociação, de comunicação, de gestão de pessoas, e digitais. A liderança pública precisa de conhecimentos e ferramentas que tragam mais eficiência para o seu trabalho, humanize a relação com as equipes, além de compreender sua responsabilidade em representar e servir ao público.

A Enap terá uma missão importante na formação derivada do Concurso Público Nacional Unificado (CNU). Como será o envolvimento da DEX?
Iara Alves: A Enap sempre foi responsável pela formação de duas carreiras: Analista de Planejamento e Orçamento e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Agora ampliamos para seis carreiras. Então estamos no processo de elaboração dessa estratégia de formação. Quando sair a aprovação do CNU, seis carreiras terão de vir para a Enap fazer a formação inicial: Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Analista de Planejamento e Orçamento, Analista Técnico de Políticas Sociais, Analista de Tecnologia da Informação, Analista de Infraestrutura e Analista de Comércio Exterior. Terão carga mínima de 380h, como etapa de concurso, antes de tomar posse no serviço público. Serão 1400 pessoas presencialmente na escola. Além disso, ofereceremos a formação no formato a distância para todas as pessoas aprovadas que não tem a exigência da formação como segunda etapa. A formação EAD de 280h, como pré-requisito para passar no estágio probatório, foi uma decisão feita conjuntamente entre MGI e Enap para trazer eficiência para a formação em nível nacional para as mais de 5 mil pessoas aprovadas no CNU que não terão a formação inicial.

Para além dos cursos, como a formação na Enap influencia a trajetória de servidores que passam por aqui?
Iara Alves: A Enap é um lugar em que as pessoas formam redes e criam vínculos para a vida. Elas vêm para cá, fazem cursos, participam de iniciativas diversas de aprendizado, eventos e oficinas e isso gera conexões. Costumo brincar dizendo que cada curso que fazemos na Enap sai um grupo de WhatsApp. Por exemplo, temos em andamento um curso para formação de chefes de gabinete. Já tínhamos promovido este curso no ano passado, quando formamos 50 pessoas. Este ano são mais 50 e eles formam uma rede entre eles e isso é muito importante porque muitos chefes de gabinete sequer se conhecem. Nesse sentido, saber com quem você precisa falar é importante. As pessoas precisam se conhecer até para facilitar a comunicação e estreitar conexões que são importantes do ponto de vista institucional. Tudo acontece muito mais rápido quando as pessoas sabem com quem precisam falar e quais os caminhos precisam percorrer. Por isso, a formação dessas redes de contato a partir da experiência das pessoas que passam pela Enap em processo de formação, capacitação e aprendizado é muito importante e valiosa. É um legado que servidores/estudantes que passam por aqui carregam em sua trajetória.

Xis Ataídes
"A liderança pública precisa de conhecimentos e ferramentas que tragam mais eficiência para o seu trabalho, humanize a relação com as equipes, além de compreender sua responsabilidade em representar e servir ao público"